Fragmentos
Ao fundo já se ouvem os primeiros acordes da banda, o bombo e os pratos, o trombone e o clarinete... É dia de festa e a aldeia está engalanada, flores espalhadas pelo chão das ruas onde, daqui pouco, há-de passar a procissão. Lá dentro, na igreja, os lugares são cada vez menos. "Olha, a filha de fulana este ano também veio", sussurra-se numa audível conversa. Adeus daqui para acolá, um beijo atirada com enormes dificuldades em voar até duas filas atrás tal o peso da saudade que leva nas asas. E o padre que entra, o bandolim que começa a ecoar pela igreja, o coro, com o seu tão tradicional sotaque beirão, "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo"... Aqui e ali um bichanar um bocado mais alto, um pigarrear a ser a conversa acaba, um "Santo, Santo, Santo" que se canta e uma hóstia que se vai tomar. E o aviso do costume: "pede-se a todos os que queiram colaborar com os andores o favor de chegarem ao altar". "Oh Manel, anda cá que falta um p'ra levar o Santo António"... E começa a disputa do costume. A canalha, implacável, e esperta, luta para levar a sua bandeirinha. Que bandeirinha carregada na procissão é garantia de mimos extra e atenção redobrada dos avós, babados, orgulhosos dos seus meninos. "Já viste o calor que estava e ele portou-se sempre tão direitinho?". Malandros estes petizes...
O almoço, esse, é sempre reforçado. Junta-se a família, os primos e tios com quem se está uma duas vezes por ano, contam-se estórias, discutem-se problemas e, mais cedo ou mais tarde, adoça-se o repasto com as estórias do antigamente, de quando a mãe e o pai e o tio eram pequenos. Estórias que, é garantido, dão direito a gargalhadas bem audíveis!
No café já não há espaço para mais ninguém. Está cheio, como de costume. No "domingo da festa" é sempre assim. Parece que toda a gente se junta ali e que não há mais cafés na aldeia. Abraços apertados de amigos de longa data. Alguns já não se viam há mais de dez anos. "Sabes como é, desde que morreram os meus pais a vontade de cá vir é pouca... Mas agora, como arranjamos a casita, é sempre mais fácil..." E as horas passam, velozes, quase sem se dar por elas... E, quando se dá por conta, já é hora de ir embora, voltar a fazer as malas, guardar as recordações e aconchegar as saudades que já se começam a sentir. Uma lágrima no olho, matreira, que se tenta esconder para que ninguém veja... e um adeus difícil. Sempre difícil dizer adeus...
Quando é que é Agosto outra vez?
(Daqui)
2 comentários:
Amigo Helder:
Sem dúvida que a escrita te corre no sangue! Nunca vi um "retrato literário" tão bem conseguido e sentido. Sei do que falo porque estou mais que certo que também sabes (e bem) do que estás a falar. É sem dúvida alguma essa a essência de um momento que se repete todos os anos e que nos enche a alma. E só não sente isso quem nunca passou pela nossa terra em tempo de Festa de Verão.
Mais uma vez faço venias ao teu talento literário que me traz agradáveis reminescências "fora da época". Ah....e não te esqueças daqui a pouco é Natal...
Desafio: Escreve uma etnografia da nossa terra! Ajudas não irão faltar!
Grande Abraço
Rui Reis
Meu caro amigo,
Simpatia a tua, tenho de admitir. Estas linhas que aqui vês não são mais do que breves momentos de inspiração que vão surgindo, aqui e ali, a partir de um nada. Sabes bem como esta terra me diz muito. Tal como a ti, naturalmente. É, realmente, um sentir diferente. E sim, já se sente o cheiro do Natal no ar. Está quase, não é?
Quanto ao desafio... É interessante, confesso. Tenho de pensar seriamente nisso meu caro.
Um grande abraço que, espero, te vá encontrar de boa saúde.
Helder Robalo
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